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Comparações entre a colonização portuguesa e a espanhola

Mapa da América Latina. Territórios verdes dominados pela Espanha e território amarelo dominado por Portugal.
Por meio de um exercício comparativo entre a colonização empreendida pelos espanhóis nas Américas e a colonização portuguesa no Brasil, compreender melhor alguns aspectos fundamentais. 
A fundação das cidades como forma de dominação territorial 
Nesta comparação que faremos sobre a colonização portuguesa e a colonização espanhola, recorreremos, principalmente, ao texto "O Semeador e o Ladrilhador", capítulo constante da obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Nesse texto, o autor nos mostra como a forma de fundar vilas e cidades nos revela muito do caráter colonizador tanto de espanhóis quanto de portugueses e, com isso, uma maior compreensão das heranças deixadas no Brasil e na América Latina até hoje. 
Na antiguidade, era prática comum fundar cidades em terras dominadas com órgãos que representassem a cultura dominadora na região. O mesmo fez a cidade de Roma sobre a Europa e o Norte da África, ampliando ainda mais sua dominação ao incluir os órgãos burocráticos de manutenção do Estado romano e aplicando suas leis nas terras distantes. Por isso, mesmo após a queda do Império Romano (1453), sobrou as instituições de manutenção desse Estado, servindo de base para os Reinos da Idade Média e as futuras nações europeias. Com isso, as cidades tiveram uma importância vital, pois foi delas que o centro de poder e da dominação se irradiavam, e as áreas rurais eram um espaço que passava a depender da cidade que ditava as leis. 
O que isso nos diz sobre o Brasil? Sérgio Buarque afirma que o que mais marcou o espírito da colonização portuguesa no Brasil foi uma "primazia acentuada da vida rural" (1971:61). Ou seja, o que os portugueses fizeram ao programar a colônia foi inverter a lógica de dominação na Europa. Aqui, o campo se formou e se fortaleceu antes das vilas, sendo estas um espaço onde o poder dos proprietários rurais era exercido sobre a administração pública colonial. Afinal, como vimos nas aulas anteriores, o sentido da colonização sendo de exploração e comércio só poderia ser um local provisório e transitório para os administradores coloniais. Quem vivia de forma mais fixa eram justamente os proprietários de engenhos. 
As instituições administrativas instaladas nas vilas não davam suporte para um Estado propriamente dito, servindo apenas para o funcionamento comercial da cana de açúcar, do algodão e das especiarias cultivadas no Norte/Nordeste. A economia de subsistência quase sobrevivia por conta própria. Isso imprimiu uma lógica rural às vilas, sendo a grande maioria destituída de infraestrutura urbana. Era a lógica colonial: esta não poderia ter um mínimo de autossuficiência, pois em tudo deveria depender da metrópole. Olhando de perto, Portugal tratava sua colônia brasileira quase com descaso, como se esta fosse uma região rural no interior de seu reino, na Península Ibérica. 
Comparações com a colonização espanhola 
Se os portugueses não fizeram grandes investimentos na colônia brasileira, o que os espanhóis fizeram na América? Devido aos sete séculos lutando contra os mouros na península (VIII-XV), os castelhanos adquiriram a estratégia de controlar de forma militar, econômica e política os territórios conquistados por meio da criação de núcleos de povoamentos estáveis, ou seja, o modelo romano antigo, revitalizado. Isso significa que a cada território mouro anexado por Castela, colonos castelhanos eram enviados para trabalhar tanto no campo quanto na administração, impondo a língua, os costumes, a religião católica e as leis de Castela no território outrora islâmico. Isso também ocorreu nos demais reinos cristãos da península, como Navarra, Aragão, Leão e a região de Catalunha. Algo muito semelhante, portanto, foi feito nas Américas. Das Antilhas ao Império Asteca (México) e Inca (Peru) a dominação foi feita por meio de colonos castelhanos que vieram para ficar, não apenas para explorar.  
As Leis das Índias foram uma espécie de Constituição das colônias americanas, elas regiam até a fundação de cidades, com normas específicas sobre o lugar onde deveriam ser erguidas e como deveriam ser construídas. Entre tais indicações estava procurar um local que fosse saudável, verificável pela abundância de homens velhos e moços de boa compleição e disposição, ausência de enfermidades, animais sãos e de bom tamanho, frutos e fontes de água aproveitável, livre de animais ferozes e plantas peçonhentas. Com indicações como essas, percebe-se porque os espanhóis não fizeram muita questão de fundar cidades ou efetuar maiores investimentos em regiões como a floresta amazônica ou o pantanal mato-grossense, hoje regiões pertencentes ao Brasil: eram áreas consideradas "insalubres", ou seja, impróprias para implantar sua "civilização" castelhana. 
Geralmente, o ponto original de uma cidade nova, fundada a partir do "zero", era a Plaza Mayor, a praça central ou principal, com os vários prédios administrativos, delegacia, residências oficiais e os melhores comércios ao redor. Como tais cidades eram previamente planejadas, a Plaza deveria ser proporcional à população que viveria nela. Todas as demais ruas da cidade deveriam partir dela ou convergir para ela (HOLANDA; 1971:62-63). 
Tal urbanidade pode ser vista, na sugestão de Sérgio Buarque, como uma tentativa simbólica de organizar o caos. Tentativa simbólica esta de matiz eurocêntrica e cristão-católica, em contraposição às culturas ameríndias consideradas bárbaras, pagãs e selvagens. Mesmo que cidades originais como a Cidade do México asteca tenha impressionado os espanhóis pelo seu tamanho, sua organização e técnica, o discurso euro-cristão justificou que mesmo a engenhosidade desses povos americanos era algo maligno, digno de ser desmontado e reconstruído para glória de Deus e do Rei de Castela. 
A construção de cidades ou a reconfiguração das já existentes foi, portanto, "uma das medidas mais importantes tomada pelo poder imperial, no sentido de assegurar o cumprimento de suas diretrizes" e com isso "manter o processo colonizador sob controle" (CENTURIÃO; 2000:55). 
Um bom exemplo dessa quase obsessão pela representação civilizadora na América está expresso no traçado retilíneo das ruas e praças, bastando olhar qualquer mapa das capitais e grandes cidades latino-americanas fundadas no período colonial, principalmente a cidade de Buenos Aires, na Argentina. Sua configuração tipo "tabuleiro de xadrez" permite uma circulação racional e objetiva, sem curvas, com cada quadra equilateralmente medindo cem metros. Como afirma Carlos Fuentes, "a cidade foi traçada a esquadro e concebida não como uma povoação de aventureiros e homens ávidos de ouro, mas como o lugar de ordem, trabalho duro e, por fim, prosperidade em que se converteu" (2001:139). Algo impensável de se encontrar em vilas portuguesas, salvo algumas poucas áreas dentro das vilas, mas jamais constituindo a regra geral. Nas cidades castelhanas, portanto, "a morfologia urbana havia se ordenado de maneira quase definitiva" (CENTURIÃO; 2000:86), bastando, após as independências, apenas algumas reformas de ordem básica. 
Como dissemos anteriormente, os portugueses estavam mais preocupados com exploração comercial, assim, a Colônia era vista como um local de trabalho passageiro, tanto para o Reino quanto para os súditos. Não houve grandes investimentos de infraestrutura urbana que acarretassem maiores despesas ou prejuízos para a Metrópole, salvo a construção de fortes para proteger o território no litoral. Já os castelhanos "fizeram do território ocupado um prolongamento orgânico do seu" (idem).  
A construção da identidade regional 
Foram fundadas, portanto, centenas de cidades na América espanhola, "desde San Francisco e Los Angeles a Buenos Aires e Santiago de Chile", sabendo que estas não eram "meros postos fronteiriços, mas centros urbanos de grande nobreza, permanentes..." (FUENTES; 2001:140). Para ficar ainda mais clara a intenção de povoar esse Mundo Novo de forma estável e permanente, foram fundadas nas principais cidades universidades, como a Universidade de São Domingos (República Dominicana) em 1538, a primeira das Américas, e, em 1551, foram também fundadas as Universidades do México e de São Marcos em Lima. 
Enquanto isso, no Brasil tem-se notícia da tentativa dos jesuítas de estabelecer uma Universidade do Brasil em 1592, mas que nunca foi reconhecida e funcionou pouco tempo, sem ter formado nenhuma turma. Posteriormente, houve o Curso de Engenharia Militar do Rio de Janeiro, em 1699, voltado, como diz o título, para militares. Com a vinda da Corte Real portuguesa em 1808, criou-se as Faculdades de Medicina de Salvador e do Rio de Janeiro, além da Escola Politécnica RJ, em 1810, a Faculdade de Direito de São Paulo em 1827, a Escola de Farmácia de Ouro Preto, em 1839, entre outras. Porém, universidade de fato no Brasil só foi fundada em 1913, no caso, a Universidade do Paraná. A prestigiada Universidade de São Paulo (USP) tem data de fundação em 1934.  
Ou seja, a ausência de instituições de ensino superior de maior porte no período colonial do Brasil, mostra o caráter transitório da colonização portuguesa, enquanto o caráter permanente da colonização espanhola está bem representado nas dezenas de universidades fundadas no período colonial (23 ao todo). Na cidade do México, inclusive, já havia uma tipografia em 1539, enquanto no Brasil a imprensa era proibida, sendo liberada somente a partir de 1808 com a transferência da Corte. 
Tal caráter transitório também é visível nas vilas portuguesas, de infraestrutura precária, localizadas de preferência no litoral, como se estivessem prontos para ir embora a qualquer momento. Já os espanhóis procuravam fundar suas cidades em lugares altos e/ ou com clima semelhante ao ibérico. Existiam normas nas Leis das Índias com indicações para evitar ao máximo a fundação de vilas no litoral, pois esses lugares estavam sujeitos a ataques de corsários e contrabandistas, além de dizerem que o caráter de povoamento portuário não formava bons costumes. 
Portugal, de fato, só se preocupou em organizar a colônia da forma mais efetiva possível a partir do período da descoberta do ouro, em 1692-1693, mais marcadamente ao longo do século XVIII. Ainda assim, o traçado das cidades portuguesas parece feito ao acaso, pensada a partir da rotina dos usos cotidianos e não pela razão abstrata e prática. Ou ainda, "a ordem que aceita não é a que compõem os homens com trabalho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade" (HOLANDA; 1971:82). É a ordem do semeador, não a do ladrilhador. 
Já os ladrilhadores espanhóis, que tudo esquadrinham, tinham uma ênfase na centralização, na unificação e no controle, características que "vem de um povo internamente desunido e sob permanente ameaça de desagregação" (idem). Castela "costurou" seu domínio na Península Ibérica na base da força e da disseminação de sua cultura, gerando dissensões internas até hoje, como na região da Catalunha e no chamado País Basco. 
Em contrapartida, Portugal não teve problemas internos quanto à união territorial e administrativa já que sempre foi um Reino único, sem feudos e centralizado. Mas isso também dotou, conforme Sérgio Buarque, o português um caráter conservador, conformista, algo de "deixa estar", encontrando no "desleixo" seu aspecto mais negativo (1971:83). 
Chegamos ao final desta aula. Caso continue com alguma dúvida, não deixe de esclarecê-la com seu professor. Você também pode utilizar o Fórum e conversar sobre o assunto com os seus colegas. 
Referências 
CENTURIÃO, L. R. M. Significados da Diversidade: cidade e cultura na América espanhola. Santa Cruz do Sul: EdUNISC, 2000. 
FUENTES, C. O Espelho Enterrado: reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio de Janeiro: Rocco; 2001. 
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971.

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