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A ciência histórica: sua organização e seus campos

A Persistência da Memória, 1931, óleo sobre tela, 24 x 33 cm, Salvador Dali, MoMA Museu Arte Moderna, Nova York, Estados Unidos.

Mostrar a ciência histórica como um saber amplo e complexo, bem como apresentar os diferentes campos do conhecimento que organizam o saber histórico.
A complexidade e a extensão 
da ciência histórica
A História é uma das ciências mais amplas e complexas do conjunto dos saberes humanos. Algumas obras sobre História surgidas na metade final do século XIX e na primeira metade do século XX, já indicavam essa amplitude no próprio título.
O historiador italiano Cesare Cantù e o escritor inglês H. G. Wells intitularam de "História Universal" suas coleções, nas quais tentaram elaborar uma grande síntese do passado dos povos. Pretensiosos em seu projeto, não escaparam contudo de confrontar a magnitude da tarefa a que se propuseram. A "História Universal" de Cantù, por exemplo, foi escrita em setenta e dois volumes! E apesar de toda essa quantidade de texto, é certo que seu trabalho deixou muitas lacunas, apesar de todo o esforço dispendido.
 Trata-se daquilo que já mencionamos anteriormente em nossas lições, mas nunca é demais repetir: o saber histórico não é mera "decoração" de nomes, datas e fatos. Seria impossível enumerar e descrever todas as ações humanas. Por outro lado, se levarmos em conta o principal, que é entender o processo histórico e suas consequências na vida das sociedades humanas, fica ainda mais evidente o grau de dificuldade.
A complexidade histórica se manifesta nas inúmeras combinações dos interesses e das ações humanas nos campos econômico, social, político, religioso e cultural de cada tempo. Tais combinações põem o historiador diante de seu objeto de estudo como Édipo se encontrou diante da esfinge no conhecido mito grego. "Decifra-me ou te devoro!", desafia o passado ao historiador.
A imprevisibilidade da história
As considerações feitas anteriormente nos levam à ideia da imprevisibilidade histórica. As variáveis sociais e suas combinações apontam para a peculiaridade dos processos históricos, que fazem de cada lance do passado uma experiência única. Diferentemente do que afirma o dito popular, a história não se repete! Por isso mesmo, o historiador não se dá a previsões, embora possa apontar certas tendências tendo como base a análise dos processos históricos anteriores e a existência de um continuum histórico.
O fatiamento da história e suas possibilidades de organização
Os tempos modernos trouxeram consigo a especialização das ciências, em face da multiplicação do conhecimento e da necessidade de explicar o mundo com maior riqueza de detalhes. Isso se percebe facilmente nas ciências exatas e nas ciências da natureza.
Na física, por exemplo, tem-se a ótica, a cinemática, a hidráulica, a mecânica. Nos conhecimentos aplicados, como a medicina, isso também fica evidente: há a cardiologia, a ortopedia, a pediatria, e assim por diante. Não é diferente com a História. Podemos falar em uma "História Econômica", em uma "História Política", em uma "História Cultural", só para exemplificar. E de fato esse fatiamento se faz a partir de critérios que permitem diferentes composições e agrupamentos de especialidades.
A história vivida pelos povos, com todas as suas especificidades, acaba exigindo a fragmentação da ciência histórica, que busca especializar-se para dar conta da decifração do passado. A especialização permite que se possa tratar mais detalhadamente da história das sociedades humanas, levados em conta os diferentes enfoques e as diversas metodologias de trabalho utilizados pelos pesquisadores.
Os historiadores afirmam, porém, que "não existem fatos que sejam exclusivamente políticos, econômicos ou culturais. Todas as dimensões da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensões separadas" (BARROS, 2004, p. 15). O fatiamento da história, portanto, requer a manutenção da ideia do conjunto, da simultaneidade dos processos e da existência das intercorrências sociais. A especialização não pode funcionar como uma forma de alienação das realidades sociais conflituosas.
Os campos da História
Os teóricos da ciência histórica têm elaborado seus quadros de especialidades, designados em termos gerais como "campos da História". É importante lembrar que não há consenso entre os historiadores a respeito da organização e da composição desses campos, o que permite a existência de diferentes classificações. Vamos aqui nos definir pelos seguintes campos organizadores: o das metodologias, o dos enfoques e o dos domínios.
No campo das metodologias, classificamos as especializações da ciência histórica a partir do método utilizado pelo cientista para trabalhar com suas fontes ou objetos. Assim, temos a história oral (que utiliza depoimentos tomados de um determinado grupo social), a história quantitativa (trabalha com documentos estatísticos e leituras numéricas da sociedade), a micro história (focaliza uma determinada ocorrência histórica e a partir dela estuda aspectos mais gerais daquela mesma sociedade), e a história regional (utiliza-se das divisões geográficas para elaborar considerações históricas dentro dos quadros definidos por tais limites). Dentro desse campo das metodologias, encontram-se ainda a história serial, a história imediata, a história local, dentre outras.
No caso dos enfoques, o olhar do historiador se dirige para um tipo específico de ação produzida por grupos e classes no âmbito de uma determinada sociedade. Temos como especialidades desse campo a história política (que leva em conta o exercício e as relações de poder na sociedade), a história econômica (o materialismo histórico utiliza-o consistentemente para desvelar a exploração que sofrem as classes trabalhadoras), a história cultural (aqui se encontra a reflexão histórica sobre a produção material e espiritual das diferentes sociedades). São ramos desse campo histórico, ainda, a história social e a história das mentalidades, dentre outras.
Nos chamados domínios da História, selecionam-se os sujeitos históricos e os objetos específicos de sua ação. A análise se torna portanto mais temática, trabalhando o pesquisador com a história da arte, a história das mulheres, a história das crianças, a história da vida privada, a história das religiões e religiosidades, a história das ideias e assim por diante.
Vale repetir: os campos da História e suas respectivas especialidades serão encontrados na historiografia organizados de diferentes maneiras, pois não há um consenso quanto a isso entre os historiadores. Isso ocorre porque existe uma superposição indiscutível dos campos históricos, que faz com que a "história biográfica" possa aparecer tanto entre as especialidades metodológicas quanto no campo dos domínios da história.
Também deve ser destacado o fato de que há novas maneiras de se produzir o conhecimento histórico, como os trabalhos interdisciplinares que criam interfaces entre a história e a literatura, a antropologia, a psicanálise e outras ciências de grande importância.
As divisões do ensino de história
A maneira de especializar o conhecimento histórico que é certamente a mais familiar de todas divide a história humana no tempo e a distribui linearmente. O ensino de História que conhecemos segue tradicionalmente essa disposição e vamos nos familiarizando com essas divisões da História desde os primeiros anos escolares. Tal distribuição linear tem como eixo organizador as concepções culturais do Ocidente.
Temos, nesse fatiamento, a pré-história, a história antiga, a história medieval, a história moderna e a história contemporânea. Utilizando-se a mesma compreensão linear das especialidades, estuda-se a pré-história do Brasil, a História do Brasil colonial, a História do Brasil imperial e a História do Brasil republicano. Por extensão conceitual, pode-se assim estudar a História da América, a História da África, a História do Oriente.
Em geral, as grades curriculares das universidades – inclusive a nossa, da UNINOVE – estão baseadas nesse expediente técnico. Temos, assim, as disciplinas que compõem o currículo a ser estudado, bem como a respectiva organização dos conteúdos dessas mesmas disciplinas.
Conclusão
A expressão latina tempus fugit, atribuída ao escritor latino Virgílio (século I a.C.), em uma tradução mais livre, significa: "o tempo passa rápido", ou ainda, "o tempo voa", "o tempo foge". Utilizamos aqui essa expressão para destacar o grande desafio que temos: resgatar o passado enquanto tempo histórico. Tempo esse que, semelhante à água indo embora pelo vão dos nossos dedos, sempre quer fugir da gente.
As divisões ou os campos da história foram projetados para nos ajudar a reter, por meio da pesquisa especializada, compreensões mais inteligentes do passado. Enfoques, domínios, metodologias, períodos do tempo histórico, todos os modos se complementam para colocar o passado humano diante de nós e, portanto, torná-lo disponível para que a sociedade do presente o reconheça.
Chegamos ao fim desta aula. Agora, acesse o Fórum para dividir a opinião com seus colegas. Se as dúvidas persistirem, não deixe de esclarecê-las com o seu professor.
Referências
BARROS, J. D. O campo da História – Especialidade e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.

LAMBERT, P.; SCHOFIELD, P. (Org.).História: introdução ao ensino e à prática. Porto Alegre: Penso, 2011. 

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